Varadouro: Terror Ambiental
Ataques inéditos à operação do ICMBio na Resex Chico Mendes expõe nova era de violência no Acre
Agente do ICMBio observa ponte queimada em ramal na Resex Chico Mendes; táticas de garimpo para sabotar operação para retirada de gado ilegal (Foto: Ascom ICMBio)
Fabio Pontes
dos varadouros de Rio Branco
Ofensiva criminosa contra agentes de fiscalização durante operação na Resex Chico Mendes marca a chegada de táticas de guerrilha ao estado, impulsionada por crime ambiental organizado, narcotráfico e forte discurso político antiambiental
O ataque criminoso com o uso de táticas de guerrilha contra os agentes ambientais federais e membros das forças de segurança que atuam na Operação Suçuarana, dentro da Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes, é sem precedentes na história acreana. Desde o início das fiscalizações do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) no país, em 2008, os servidores do órgão nunca tinham sido atacados durante atividades de campo no estado.
A destruição de pontes com o uso de fogo e a tentativa de incendiar as instalações da base montada no Seringal Nova Esperança, em Xapuri, são o retrato de uma nova realidade de reação dos infratores contra as operações ambientais na região.
É também reflexo do recrudescimento de uma agenda reacionária liderada por velhos e novos caciques da política local – ancorados no bolsonarismo -, que alimentam o discurso de que a agenda de preservação da floresta trava o “progresso do agronegócio”, levando ao empobrecimento da população.
A falsa narrativa é o que permeia o discurso de ódio da atual classe política dominante contra governos anteriores, a exemplo do PT local de onde originou-se a liderança política de Marina Silva (Rede), hoje ministra do Meio Ambiente.
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O próprio governador Gladson Cameli (PP), em um de seus primeiros discursos ao assumir o cargo, em 2019, desmoralizou os agentes do Instituto de Meio Ambiente do Acre (Imac), ao afirmar que ninguém mais precisava pagar as multas “porque agora quem está mandando sou eu”. Como consequência, o estado registra níveis recordes de desmatamento.
Antes restrita ao campo dos debates, a retórica antiambiental agora se caracteriza em ações violentas contra agentes do estado, ameaças de morte contra os defensores ambientais e ativistas de direitos humanos. Para estes grupos, a tranquilidade de se estar em agendas de campo, aos poucos, vai ficando no passado.
A relação entre os crimes ambientais e facções criminosas deixa o território acreano num ambiente de hostilidades e violências – e não importa se é na cidade ou na zona rural.
Táticas que antes a população local estava acostumada a ver apenas em estados como Rondônia, Pará e Mato Grosso parecem ter sido “importadas” para o Acre. Agentes ambientais do ICMBio e do Ibama ouvidos pelo Varadouro avaliam que este cenário é reflexo de uma “corrida pela terra”, liderada por pessoas vindas de Rondônia. Se noutros tempos os compradores de colocações no Acre ficaram genericamente conhecidos como “paulistas”, agora eles são os “rondonienses”.
O estado vizinho é conhecido pelo histórico de violentos conflitos fundiários e de resistência às operações de repressão aos crimes ambientais, como as de combate a invasões a terras indígenas e unidades de conservação. Por lá, a destruição de pontes, a derrubada de árvores sobre estradas para atrapalhar a passagem das equipes, o ataque a tiros contra as bases e viaturas são práticas recorrentes.
Se antes ambiente era de tranquilidade, presença de grupos criminosos em áreas rurais coloca em risco a atuação de órgãos ambientais e organizações da sociedade civil (Foto: Acervo Varadouro)
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‘Crime ambiental organizado’
Servidores ouvidos pela reportagem apontam que as mesmas táticas observadas em estados onde há intenso histórico de conflitos de terra estão sendo usadas no Acre. Além disso, completam os agentes, um outro componente cria o ambiente de insegurança para as equipes: a atuação de grupos criminosos.
Por estar localizada no centro da tríplice fronteira entre Brasil, Bolívia e Peru, a Resex Chico Mendes é rota estratégica para a passagem de drogas. Por meio de ramais, varadouros e rios, os mulas fazem o transporte dos entorpecentes até chegar em Rio Branco, o principal centro de consumo no estado e distribuição para outras regiões do país. Por caminho nas matas, burlam as barreiras policiais montadas na BR-317.
Na avaliação dos agentes federais ouvidos pela reportagem, o ataque contra a base do ICMBio em Xapuri pode ter a participação de integrantes de grupos armados ligados ao tráfico de drogas. Além disso, há suspeitas de envolvimento destas organizações na comercialização de terras dentro da Resex Chico Mendes, com ameaças aos moradores que levem ao conhecimento das autoridades a prática ilegal.
Outra estratégia comum observada na Operação Suçuarana é impedir que proprietários de caminhões boiadeiros disponibilizem os veículos ao ICMBio para a retirada do gado. Segundo informações dos agentes federais, estes caminhoneiros são alertados por membros de grupos criminosos para não realizar o serviço.
Ameaças a donos de caminhões boiadeiros e de frigoríficos comprometem operação de retirada de gado ilegal de dentro da Resex Chico Mendes (Foto: Ascom ICMBio)
“Foi repassado o recado no submundo do crime de que os caminhões pegos transportando o gado apreendido iam ser queimados. Muita gente ficou com medo. Tudo isso chegou até a gente por denúncias anônimas. A gente já sabe que ali tem uma mistura de atuação entre o crime organizado com o crime ambiental”, diz um dos investigadores. Além dos caminhoneiros, donos de frigoríficos também passaram a receber ameaças.
O ataque sofrido pelo frigorífico na madrugada de terça (17) é um exemplo de como as empresas ligadas à pecuária são pressionadas e não atender as demandas solicitadas pelo ICMBio.
Tática semelhante é usada em cidades do interior do estado de Rondônia durante operações do Ibama que apreendem madeira em situação irregular no pátio das madeireiras. Os donos de caminhões de tora ou tratores recebem a mesma orientação. Muitas das vezes, apenas veículos de cidades mais distantes se disponibilizam a fazer o serviço, mas apenas com a escolta policial.
Das ameaças às agressões
Funcionário do ICMBio desde a sua fundação e com ampla experiência de fiscalizações na Resex Chico Mendes, Francisco Cavalcante do Amaral (nome fictício) afirma jamais ter presenciado situações como as ocorridas no último fim de semana. Por uma questão de segurança, os agentes ouvidos por Varadouro pediram anonimato e terão seu sigilo preservado.
“Nesse nível de situação, eu nunca tinha presenciado. Já vi a questão de assédios por PAD (Processo Administrativo Disciplinar, que pode resultar na demissão do servidor), ameaças de processos judiciais, ameaças de morte, mas do jeito que está agora, não tinha visto ainda”, afirma ele.
É comum que servidores do ICMBio recebam avisos de que estão com “a cabeça a prêmio”, com confirmações de pistoleiros contratados para executar o serviço. Nos últimos anos, essa tem sido a rotina de muitos servidores ambientais com atuação na Amazônia, que precisam lidar com o medo das ameaças e das intimidações. Um ambiente de violência que foi potencializado pelo governo Jair Bolsonaro.
Os quatro anos do ex-presidente foram marcados por intensa perseguição aos funcionários públicos do Ibama e ICMBio. Seus discursos contra a agenda ambiental serviram como gatilho para impulsionar a violência não só contra eles, mas também lideranças que atuam na linha de frente na defesa da floresta e das populações tradicionais.
Aprovado no primeiro concurso do ICMBio, o analista ambiental Juarez Aquino (também nome fictício) também ressalta que atentados contra os agentes e as bases é inédito no Acre, e que “esse ineditismo seja o único”.
Policiais militares do BPA: presença das forças de segurança em operações ambientais passou a ser recorrente ante ambiente de violência no Acre (Foto: Divulgação Assessoria)
“Aqui no Acre é a primeira vez que vejo essa situação. Isso mostra que a intensidade da violência vem se escalando. Eu atribuo isso muito ao ambiente político. Deputados, senadores incentivando politicamente essas reações. As ameaças sempre existiram, mas não para esse modo de violência”, afirma ele.
“Nem mesmo a presença de policiais fortemente armados, da Força Nacional, do Exército intimidou a ação deles. Isso é inédito na história do Acre. Isso eu só vi em garimpo, é uma tática de garimpeiro”, ressalta ele.
Para o servidor, esse tipo de situação compromete outras agendas de trabalho do ICMBio dentro da Resex Chico Mendes, para além das fiscalizações, já que se cria um ambiente de insegurança. Não é de hoje que a presença do órgão no interior da reserva tem algum tipo de rejeição, mas sem o registro de ataques.
Atuação de quadrilhas
“Eu sou de uma época que a gente ia pra campo fazer fiscalização e nem precisava de apoio policial. Hoje em dia isso é quase impossível. Você tem que montar a sua equipe e chamar mais uns 10 policiais, a depender da área da operação”, diz um servidor aposentado do Ibama, que desde a década de 1980 atuou em Rondônia.
De acordo com ele, uma das táticas mais usadas é colocar pregos em pedaços de pau dentro de valas ou córregos para furar os pneus das viaturas.
“Quando não é dentro da água eles colocam entre folhas no meio do ramal. Eles amolam a ponta dos pregos no esmeril pra ter mais chance de rasgar os pneus. A gente andava em três, quatro viaturas, cada uma com mais de um estepe pra não ficar no meio do caminho”, conta.
De acordo com ele, ações como as presenciadas por ele e ocorridas no Acre essa semana se caracterizam como um modus operandi destas quadrilhas especializadas em crimes ambientais.
“Em Rondônia várias máquinas (tratores, caminhões) apreendidas pelo Ibama e acauteladas para associações de produtores e prefeituras, foram roubadas ou furtadas pelos criminosos. Teve um caso de um trator, com lâmina e guincho que estava acautelado com a PM de Buritis e foi furtado”, cita ele.
Servidora da carreira ambiental federal há 22 anos, Roberta Graf define as novas estratégias de resistência violenta às ações de fiscalização como “rondonização”. A tão propalada “rondonização” do Acre a partir da implementação de seu modelo de agronegócio defendida por parte expressiva da classe política acreana parece acontecer também nos ataques criminosos contra as forças legais do Estado.
Profissão Perigo: agentes ambientais federais vivem sob constantes ameaças e pressões em ações na Amazônia (Foto: Fabio Pontes/Varadouro)
“Nós temos uma situação gravíssima no Brasil inteiro, porém, mais precisamente na Amazônia, com alguns focos como Roraima, uma parte do Pará, grande parte do Mato Grosso, praticamente toda Rondônia, sul do Amazonas. Toda essa situação mais tensa está chegando ao Acre em termos de aumento do crime ambiental aliado a muita violência”, afirma ela, que até o mês passado ocupava a presidência da associação dos servidores da carreira federal ambiental, a Ascema.
“Essa violência generalizada de grilagem ela vem com muitas invasões de terra. Ela vem com a exploração de madeira, depois vem a derrubada para colocar o capim e depois o gado. E tem a ver com latifundiário, sim, com redes de laranjas, parte dele altamente ligados com políticos locais “, completa ela.
Unidos, políticos e infratores tinham influência direta dentro do Ministério do Meio Ambiente do governo Bolsonaro. Graças a essa ingerência, conseguiram acabar com as fiscalizações do ICMBio. Também redigiram o texto do famigerado Projeto de Lei 6024, que visava desafetar mais de 22 mil hectares do interior da reserva extrativista dos maiores desmatadores, alvos de processos de desintrusão junto à Justiça Federal. E é esse mesmo grupo que agora alimenta as manifestações contra a operação do ICMBio e propaga discursos de ódio contra a ministra Marina Silva.
Além do ambiente de hostilidade em si, Roberta Graf aponta a falta de estrutura adequada para os servidores atuarem em campo.
“A gente não tem segurança adequada, a gente não tem número de pessoal suficiente, bem como veículos e equipamentos”, aponta.
Discurso de falência do extrativismo e de defesa do agronegócio pela classe política fomentam as invasões de terras na Resex Chico Mendes, levando-a a níveis recordes de desmatamento e queimadas (Foto: Gleilson Miranda/Varadouro)
“Do ponto de vista dos servidores, a situação é muito grave. Como a gente não tem uma grande prioridade por parte da sociedade, a gente também não tem prioridade por parte do governo e, consequentemente, a gente tem péssimas condições de trabalho. Então somos nós na ponta, com nossos corpos, nossas vidas, nossa saúde mental, a gente tá sofrendo isso todos os dias. Antes isso não acontecia no Acre, e já começa a acontecer.”
E, assim, neste ambiente de violência no campo, o Acre se reencontra com seu passado sombrio, quando lideranças que atuavam na defesa dos seringueiros e povos indígenas eram executados. Que o Estado possa usar de sua autoridade e poder constituídos pela lei para identificar e punir quem deseja impor suas vontades na base da violência.