Como o Comitê semeou memória com o Prêmio Chico Mendes de Resistência na Amazônia

Em meio a tempos de ataques e apagamento histórico, o Prêmio emergiu como farol de um movimento que, há décadas, luta pela Amazônia e seus povos

Raimundão com o troféu da premiação de 2024. Foto: Hannah Lydia/Comitê Chico Mendes

Nascido da urgência e da autonomia, um reconhecimento anual é uma declaração de que os ideais de Chico Mendes persistem, moldados e sustentados unicamente pela disciplina e organização do Comitê Chico Mendes e seus parceiros: O Prêmio Chico Mendes de Resistência. No Acre, o Comitê Chico Mendes, guardião desse legado, tem sido o pilar para que os ideais de sustentabilidade socioambiental, direitos humanos e resistência não se percam nas veredas do tempo. 

O Comitê Chico Mendes assumindo sozinho a responsabilidade pelo prêmio. E, inclusive, por isso colocamos a palavra “resistência” no final do nome", fala Gomercindo Rodrigues, o Guma, sobre sua primeira lembrança do Prêmio.

Uma forma de resistência a esse apagamento da história do Chico e da luta dos povos da floresta
— Gomercindo Rodrigues

A trajetória do prêmio é marcada por uma evolução significativa, refletindo as complexidades da luta ambiental e a necessidade de resguardar a essência dos ideais de Chico Mendes.

“Para não ser mais o mesmo prêmio que existia antes, com a participação do Estado, ele passou a se chamar “Prêmio Chico Mendes de Resistência”. Algumas categorias foram reorganizadas, e formamos uma comissão dentro do comitê, com participação de entidades parceiras, como a SOS Amazônia, a CDDHEP (Centro de Defesa dos Direitos Humanos e Educação Popular no Acre), a CPI-Acre (Comissão Pró-Indígenas do Acre) e outras. Essa comissão, junto com integrantes do próprio comitê, definiu não apenas o novo nome, mas também os critérios e as categorias a serem contempladas", explica Rodrigues.

Os Anos de “Florestania" (2004-2018)

Originalmente, o reconhecimento às causas socioambientais no Acre se materializava no "Prêmio Chico Mendes de Florestania", uma iniciativa instituída pelo Estado do Acre por meio do Decreto Nº 10.860, em 3 de setembro de 2004. Este prêmio visava reconhecer o conceito de florestania, "um modo de pensar, criar, produzir e ser feliz, tipicamente amazônico", que busca construir uma sociedade tradicional, moderna, original e solidária. 

Angela Mendes, presidenta do Comitê Chico Mendes, entregando o antigo Prêmio Chico Mendes de Florestania ao Papa Francisco. Foto: Conexão Planeta

Até o ano de 2018, esta premiação era concedida pelo governo estadual, com o Comitê Chico Mendes desempenhando um papel ativo na seleção de personalidades, instituições e comunidades homenageadas.

Durante este período, o prêmio apresentava categorias como Internacional, Nacional, Estadual e Comunitária, com o patrocínio do Estado facilitando a logística e a produção das homenagens. A lista de agraciados ao longo desses anos reflete a abrangência e o impacto inicial do prêmio:

2004

Internacional/Nacional: Anthony Gross (antropólogo inglês).

Estadual: Marina Silva (senadora).

Comunitária: Joaquim Yanawawá (líder indígena).

2005

Internacional/Nacional: Mary Allegretti (antropóloga).

Estadual/Urbana: Banda Los Porongas e Gesileu Salvatore.

Estadual/Florestal: Associação Vertente.

2006

Internacional/Nacional: José Roberto Marinho.

Estadual: Companhia Garatuja (espetáculo “Chapurys”).

Comunitária: Cooperativa Saboaria Xapuri.

2007

Internacional/Nacional: Manuela e Mauro Almeida.

Estadual: Jorge Viana (ex-governador).

Comunitária: Cecília Mendes.

2008 – Edição Especial

Homenagem ampla (20 anos do assassinato de Chico Mendes) a figuras como: Adrian Cowell, Ailton Krenak, Antônio de Paula, Carlos Walter, Elson Martins, Gumercindo Rodrigues, Julia Feitoza, Lucélia Santos, Dom Moacir Grechi, Raimunda Bezerra, Raimundo Mendes de Barros, Sueli Bellato, Sabá Marinho, Stephan Schwartzman, Terri Aquino, Toinho Alves, Zuenir Ventura e outros.

O Nascer da “Resistência" (2019 em diante)

O ano de 2019 marcou um ponto de virada decisivo. Com a chegada de uma nova gestão estadual, o Comitê Chico Mendes tomou a decisão de assumir integralmente a responsabilidade pelo prêmio, rebatizando-o como "Prêmio Chico Mendes de Resistência". 

“O comitê passou a assumir integralmente a organização, com uma comissão interna responsável pela concessão do prêmio, definição dos critérios e aprimoramento da metodologia", lembra Guma.

A partir de então, o Comitê redefiniu completamente a metodologia, as categorias e os critérios, formando uma comissão interna com a participação de parceiros. Essa nova fase estabeleceu um balizamento mais claro para a concessão do prêmio.

Categorias e critérios atuais:

O Prêmio Chico Mendes de Resistência, concedido anualmente durante a Semana Chico Mendes, atualmente, abrange cinco categorias essenciais:

  • Jovem Liderança: Para jovens de até 35 anos, com atuação inovadora e vida dedicada às comunidades tradicionais e ancestrais, sem restrição da comunidade e atuação em coletivos ou organizações de juventudes.

  • Povos Originários e Comunidades Tradicionais: Para povos e comunidades com práticas sustentáveis, ações de manutenção da identidade cultural e uso comum/coletivo do território e recursos naturais/bens comuns.

  • Relevância Institucional: Para instituições que desenvolvem pesquisas e práticas para a melhoria da qualidade de vida das populações, apoiam projetos de produção sustentável, segurança alimentar, saúde, educação, comunicação, educação ambiental, preservação do meio ambiente, fortalecimento da cultura local e questões de juventude, gênero e comunidade LGBTQI+.

  • Personalidade: Para indivíduos que divulgam os ideais de Chico Mendes através de expressões artísticas, buscam recursos financeiros/tecnológicos para o bem-viver das populações ou desenvolvem projetos diretos para a melhoria da qualidade de vida dessas populações.

  • Ativismo nas Redes: Uma categoria mais recente (criada em 2024), aberta à indicação pública, que reconhece o ativismo digital na divulgação dos ideais de Chico Mendes, no fortalecimento de questões socioambientais, de juventude, gênero, raça, comunidades tradicionais, comunidade LGBTQI+ ou povos originários, e na capacidade de informar, mobilizar e inspirar através das redes sociais.

Os critérios gerais para todas as categorias incluem práticas de sustentabilidade consoantes aos ideais de Chico Mendes, exemplo de resistência, práticas de conservação replicáveis, atuação em Direitos Humanos, conduta compatível e garantia de paridade de gênero. 

As indicações para as primeiras quatro categorias são restritas a associados e membros fundadores não associados do Comitê, enquanto a categoria de Ativismo nas Redes é aberta a qualquer pessoa.

Uma nova era

A partir de 2019, o prêmio passou a honrar figuras e coletivos que encarnam a resistência e a defesa da Amazônia. Com o passar do tempo, os critérios foram sendo aprimorados. Houve uma maior integração com diferentes grupos, inclusive com a juventude, e, mais recentemente, uma categoria dedicada à “militância em rede”. A presença nas redes sociais se tornou uma forma importante de manter vivos os ideais do Chico e divulgar a luta para novas gerações. A ideia do prêmio sempre foi reforçar e ressaltar os ideais do Chico Mendes

“Um exemplo marcante foi no primeiro Prêmio Chico Mendes de Resistência, quando homenageamos o professor Jorge Rivasplata. Ele fazia, todos os anos, uma pintura do Chico como forma de manter viva a memória dele. Conseguimos premiá-lo ainda em vida, o que foi muito especial", fala Guma

2019

Jovem Liderança: Daiane Correia do Nascimento.

Povos e Comunidades Tradicionais: Aldeia Shanekaya.

Relevância Institucional: Conselho Nacional das Populações Extrativistas - CNS.

Personalidade: Jorge Rivasplata de La Cruz.

2020

Jovem Liderança: Jurivam Bezerra Rios.

Comunidades Tradicionais: Comunidade Alto Santo.

Relevância Institucional: Articulação dos Povos Indígenas do Brasil - APIB.

Personalidade: Raoni Metuktire.

2021

Jovem Liderança: Letícia Santiago de Moraes.

Comunidades Tradicionais: Comunidade do São Bernardo, Rio Branco - Acre.

Relevância Institucional: ASPROC (Associação dos Produtores Rurais do Médio Juruá/AM).

Personalidade: Neide Bandeiane Santos.

2022

Jovem Liderança: Cátia Melo.

Povos Originários e Comunidades Tradicionais: Quintal dos Pescadores.

Relevância Institucional: Instituto Mapinguari.

Personalidade: Nenzinho - Resex Cazumbá Iracema.

2023

Jovem Liderança: Laiane Santos.

Povos Originários e Comunidades Tradicionais: Quilombo Nova Vista do Ituqui.

Relevância Institucional: Mídia Ninja.

Personalidade: Claudelice Santos.

2024

Premiados anunciados durante a Semana Chico Mendes.

Ativismo nas Redes: José Kaeté, "o Zé na rede".

Institucional: Amazônia de Pé.

Jovem Liderança: Samsara Nukini.

Personalidade: Leide Aquino.

Povos Originários e Comunidades Tradicionais: Terra Indígena do Rio Amônea.

O prêmio continua sendo um ponto de referência para as pessoas. E, de um tempo para cá, com a questão das redes sociais e a possibilidade de receber indicações externas, o prêmio ganhou novos horizontes. Isso ampliou bastante o alcance e a participação, como diz o entrevistado, Gomercindo Rodrigues.

“Acho isso muito importante, porque quem recebe o prêmio se sente valorizado, e isso se reflete no reconhecimento das comunidades. Temos recebido um retorno muito positivo das pessoas sobre essa valorização, o que é muito gratificante", relata

Marcos de transição:

03 de setembro de 2004

Criação do "Prêmio Chico Mendes de Florestania" pelo Decreto Nº 10.860 do Estado do Acre.

Até 2018

O prêmio era concedido pelo Estado do Acre, com participação do Comitê na seleção.

2008

Edição Especial do prêmio, homenageando 20 pessoas, em memória aos 20 anos do assassinato de Chico Mendes.

2019

O Comitê Chico Mendes assume a responsabilidade pelo prêmio, rebatizando-o como "Prêmio Chico Mendes de Resistência", com nova metodologia e critérios. Concessão do primeiro prêmio nesta versão.

Pós-2019

Aprimoramento dos critérios, reorganização de categorias e maior participação do Comitê e parceiros. Inclusão da categoria "Ativismo nas Redes". Produção das peças do prêmio passa a envolver artistas locais.

2024

Indicações abertas para as categorias Jovem Liderança, Povos Originários e Comunidades Tradicionais, Relevância Institucional e Personalidade.
A categoria "Ativismo nas Redes" é aberta ao público.
Prazo para indicações: até 1º de novembro de 2024.
Premiados divulgados em dezembro de 2024.
Comissão presidida por Vânya Regina Rodrigues da Silva, com Angela Maria Feitosa Mendes na presidência do Comitê.
Discussões sobre design da estatueta incluem poronga, materiais recicláveis, borracha e marchetaria.

2025

Prazo para indicações: até 21 de agosto de 2025.
Premiados divulgados durante o Festival Jovens do Futuro.

O prêmio tem se adaptado para refletir as novas formas de luta, como o ativismo nas redes sociais, reconhecendo sua importância para "manter vivos os ideais do Chico e divulgar a luta para novas gerações". 

A Comissão do Prêmio Chico Mendes de Resistência, atualmente presidida por Vânya Regina Rodrigues da Silva, com Angela Maria Feitosa Mendes como presidenta do Comitê, é a responsável por apreciar as indicações e escolher os premiados, sempre buscando a paridade de gênero e alinhamento com os princípios do líder seringueiro.

José Kaeté, o primeiro vencedor da categoria “Ativismo nas Redes". Foto: Hannah Lydia/Comitê Chico Mendes

Memória e legado

“Aqui, especialmente, existe o tempo todo uma tentativa de destruir esses ideais, atacar a luta extrativista e promover um apagamento histórico. Mas, até agora, não conseguiram. E acredito que o comitê tem tido um papel fundamental nesse sentido", declara o advogado.

Ele é, nas palavras de Guma, "uma forma de resistência a esse apagamento da história do Chico e da luta dos povos da floresta".

“Essa questão dos 35 anos foi muito significativa. Trazer pessoas que conheceram e conviveram com o Chico lá atrás, que tiveram uma relação de amizade com ele — seja em Xapuri, seja fora —, antigos companheiros e companheiras de luta que nunca tinham recebido uma homenagem, foi muito importante. Isso fortalece a luta para manter vivos os ideais do Chico, o que é uma tarefa difícil", diz Guma.

Público na edição 2024 do Prêmio Chico Mendes de Resistência. Foto: Hannah Lydia/Comitê Chico Mendes

Gomercindo espera que o prêmio continue sendo, acima de tudo, uma homenagem aos ideais do Chico. Que tenha capacidade, competência, organização e disciplina — como dizia o próprio Chico — para garantir que o prêmio seja, de fato, um reconhecimento às pessoas e às suas lutas, mas também uma homenagem direta à memória do Chico.

“O mais importante é que o prêmio não se transforme em algo mais ligado ao marketing do que à memória. Ele precisa continuar sendo, principalmente, memória — um instrumento para manter vivos os ideais do Chico e engajar cada vez mais pessoas, especialmente a juventude, os “jovens do futuro”, no conhecimento e na defesa dessa história", conclui Guma.

Sobre o Comitê Chico Mendes:

Criado em 1988 por militantes, familiares e organizações da sociedade civil na noite do assassinato do líder seringueiro e sindicalista Chico Mendes, o Comitê Chico Mendes surgiu como guardião de seus ideais e legado. Até 2021, atuou como um movimento social, promovendo a Semana Chico Mendes e o Festival Jovens do Futuro. 

Diante do desmonte da Política Nacional de Meio Ambiente, que afetou violentamente os territórios e suas populações, especialmente as Reservas Extrativistas, decidiu dar um passo estratégico para fortalecer sua atuação em prol do bem-estar social, ambiental, cultural e econômico das comunidades tradicionais. 

Em maio de 2021, após um amplo processo de escuta e diálogo entre membros e parceiros, optou-se pela institucionalização do Comitê Chico Mendes. A decisão representou um marco na trajetória da organização, permitindo a implementação de projetos estruturados sem abrir mão da essência de resistência, expressa nas Semanas Chico Mendes, realizadas desde 1989, e no Festival Jovens do Futuro, promovido a partir de 2020.

Próximo
Próximo

“O Comitê faz o trabalho que Chico fazia": pré COP30, Festival Jovens do Futuro mobiliza final de semana em Rio Branco