Em Xapuri, crédito rural vira ferramenta de permanência na floresta

Em um município marcado pelo legado de Chico Mendes, o acesso ao PRONAF transforma o cotidiano de quem vive da roça, do extrativismo e da floresta em pé

Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) é uma das ferramentas de garantir crédito aos produtores. Foto: Alexandre Noronha

Por Hellen Lirtêz

Em Xapuri, município símbolo da luta extrativista no Acre, o acesso ao crédito rural por meio do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) ganha materialidade na vida de agricultores familiares e extrativistas. Em um território marcado por dificuldades históricas de acesso a políticas públicas, o financiamento aparece como instrumento concreto para fortalecer cadeias da sociobiodiversidade, diversificar a produção e sustentar a permanência das famílias no campo.

A cena se repete em associações, cooperativas e propriedades do município: produtores que antes ficavam à margem do sistema bancário agora assinam contratos de custeio e investimento. Para quem vive da roça, do manejo e da pequena produção, o crédito não é símbolo — é condição prática para plantar, colher e vender.

Moradora de Xapuri, Maria do Socorro vive da agricultura familiar ao lado da família. Ela cultiva milho, cana e mandioca — base da farinha que complementa a renda — e, mais recentemente, passou a investir em novas culturas.

“A gente trabalha com plantação. Planta roça, planta milho, planta cana, faz farinha pra vender. Agora também estamos trabalhando com cacau, açaí, abacaxi, tudo isso”, conta.

Banco do Brasil explicou ferramentas para fomentar o crédito ao produtor. Foto: Alexandre Noronha

A adesão ao programa de crédito rural é recente e acompanha o início do período chuvoso, quando o plantio se intensifica. Segundo Maria do Socorro, o financiamento começou há cerca de três anos.

“Comecei quando começou a chover, tem uns três anos. A gente veio porque o pessoal chamou pra fazer e isso ajuda mais um pouco”, diz.

Ela afirma que já integra o programa e que os resultados, ainda que modestos, já são perceptíveis no cotidiano da família.

“A gente já está no programa, sim. E tem resultado. Um pouco, né? Porque às vezes você não tem dinheiro naquela hora, aí faz o plantio, recebe aquele dinheiro e já dá uma ajuda.”

Além de impulsionar a produção, o crédito ajuda a enfrentar entraves estruturais que se repetem todos os anos, como as mudanças climáticas e as dificuldades de escoamento da produção durante o inverno amazônico, quando os ramais ficam quase intransitáveis.

“Ajuda, filha. Porque antes eu morava no Seringal, agora estamos aqui no Polo da Sibéria. As plantações são aqui, mas meus meninos estão lá. Eu os orientei a fazer também, porque melhora muito” explica.

Comitê Chico Mendes estruturou o eixo de sociobioeconomia neste ano. Foto: Alexandre Noronha

Para Maria do Socorro, as condições do financiamento fazem diferença justamente por dialogarem com a realidade da agricultura familiar “Uma coisa que você recebe oito mil reais e paga só mil e seiscentos depois dá uma força boa”, resume.

Historicamente, agricultores familiares e extrativistas de Xapuri enfrentaram uma combinação de entraves para acessar crédito: burocracia excessiva, falta de documentação, ausência de assistência técnica continuada e produtos financeiros pensados para o agronegócio, não para a floresta. O resultado foi a exclusão sistemática de quem produz em pequena escala e de forma diversificada.

Esse cenário também marcou a trajetória de Damião Nunes Alves, agricultor do município de Xapuri, nascido e criado na Reserva Extrativista Chico Mendes. Ele vive na colocação conhecida como Buraco e acessa o crédito rural como forma de fortalecer a produção e garantir continuidade ao trabalho no território.

“É um benefício bem legal. A gente trabalha de uma forma e esse crédito é um projeto bom pra nós que mora na reserva”, afirma.

Damião cultiva principalmente milho, arroz e mandioca. Com o avanço da idade e problemas de visão, precisou adaptar a forma de trabalho, passando a contratar mão de obra para manter a produção ativa.

“Lá a gente planta milho, arroz e mandioca. Antes eu fazia tudo, agora eu pago pra fazer, por causa da minha vista”, explica.

Público aprendeu mais sobre como acessar estes recursos. Foto: Alexandre Noronha

A renda da família não é contabilizada mês a mês, mas ao longo do ano. Segundo ele, a meta gira em torno de cinco mil reais anuais com a produção agrícola, valor que complementa a aposentadoria. “A renda nossa a gente não registra por mês, é por ano. A meta é uns cinco mil por ano. Agora melhorou um pouco porque eu sou aposentado”, conta.

Para Damião, o crédito representa uma oportunidade de aprendizado e reorganização produtiva. Ele afirma que passou a focar mais no plantio e em projetos coletivos, como uma iniciativa voltada à produção de arroz.

“Eu acredito mesmo que é um caminho bom pra nós continuarmos produzindo. Agora vai ter com que pagar o nosso legume. É um projeto muito legal pra nós”, afirma.

Nesse contexto, o PRONAF surge como política estratégica. Ao viabilizar o custeio do plantio, a compra de insumos básicos e pequenos investimentos produtivos, o programa ajuda a fortalecer economias locais e a reduzir a pressão por atividades predatórias. Em um município que carrega o legado de Chico Mendes, o crédito rural se insere no debate central sobre desenvolvimento: manter a floresta em pé exige renda, apoio técnico e políticas públicas contínuas.

Essa diretriz também orienta a atuação do Banco do Brasil na região. Segundo José Ricardo Sacerom, vice-presidente de Governo e Sustentabilidade da instituição, desde o ano passado o banco passou a operar uma estratégia específica de sociobioeconomia, voltada para ampliar o acesso ao crédito em territórios tradicionais.

Durante o dia, os produtores poderiam contratar o crédito. Foto: Alexandre Noronha

“Nós inauguramos no banco a estratégia de sociobioeconomia. A ideia é fazer o crédito chegar às comunidades, chegar aos territórios, realizar fóruns de ativação de crédito e regularizar a situação dos trabalhadores, agricultores familiares, extrativistas, população ribeirinha e povos originários”, afirma.

De acordo com Sacerom, o objetivo não é induzir mudanças forçadas no modo de produção, mas apoiar atividades que já existem e ampliar sua capacidade de gerar renda.

“O objetivo do banco é incentivar e apoiar essa população nas atividades que elas já fazem hoje. A gente sabe que o crédito aumenta a possibilidade de expandir a atividade, melhorar o nível de renda e trazer um retorno maior para essas comunidades”, diz.

A estratégia inclui atuação em toda a cadeia produtiva, do financiamento ao escoamento da produção um dos principais gargalos enfrentados por agricultores e extrativistas na Amazônia.

“A gente sabe que existem dificuldades de escoamento e de acesso ao mercado consumidor. Por isso, o nosso objetivo é trabalhar com toda a cadeia produtiva”, explica.

Chico Mendes foi um grande defensor da sociobioeconomia antes mesmo do termo ser usado. Foto: Alexandre Noronha

Segundo o vice-presidente, o Banco do Brasil já financiou cerca de R$ 2,7 bilhões dentro dessa estratégia, iniciada na Amazônia — em estados como Pará, Amazonas e Acre — e que agora começa a ser levada para outras regiões do país.

Outro eixo central é o acompanhamento técnico das famílias financiadas, em parceria com organizações da sociedade civil.

“Fornecer crédito sem acompanhamento não resolve o problema. Por isso, trabalhamos com parceiros como a Conexsus, formamos agentes de crédito e firmamos convênios com institutos que levam orientação técnica, novas pesquisas e técnicas da agricultura e do extrativismo”, afirma.

Para Sacerom, o crédito cumpre um papel simples e decisivo: viabilizar o que antes era impossível.

“Crédito é levar dinheiro para uma família ou produtor que não tem como expandir a produção. Às vezes é uma roçadeira para facilitar o manejo do açaí ou uma máquina que substitui o trabalho pesado de várias pessoas. Isso aumenta a produtividade, melhora a renda e fortalece a economia local”, resume.

Ainda assim, os desafios permanecem. O acesso ao crédito não é universal, a burocracia segue como obstáculo e a falta de assistência técnica pode comprometer resultados. Agricultores e extrativistas são unânimes ao afirmar que o financiamento só cumpre seu papel quando vem acompanhado de políticas de apoio, infraestrutura e garantia de comercialização.

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