Legado de Luz: encontro de gerações reafirma a Aliança dos Povos da Floresta ao final da Semana Chico Mendes

Em noite de memória e vigília política, lideranças históricas e juventude acreana traçam a linha que une os empates dos anos 1980 à campanha por justiça climática na COP30

Ao final do evento, participantes realizam cortejo e vigília com velas aos pés da estátua de Chico Mendes. Foto: Alexandre Noronha

"As coisas começam pequeninas, depois crescem". A frase dita por Angélica Mendes no Teatro Hélio Melo fala bem sobre como foi o ano do Comitê Chico Mendes. Na noite deste domingo, 22 de dezembro, data que marca os 37 anos do assassinato de Chico Mendes e a fundação do Comitê que leva seu nome, o evento "Legado de Luz" encerrou a Semana Chico Mendes 2025.

Sob a mediação de Angela Mendes, o palco se tornou um ponto de encontro entre dois tempos distintos da Amazônia: o tempo da pólvora e da abertura bruta das estradas na década de 1970, e o tempo atual, marcado pela emergência climática e pelas negociações globais.

A floresta que tinha dono (e aluguel)

Para entender o peso da Aliança dos Povos da Floresta, a mesa precisou voltar a um passado que muitos livros de história não detalham. O indigenista e fundador da CPI-Acre, Txai Terri, transportou o público para o Acre da década de 1970, quando o "progresso" chegava rasgando a mata. Segundo Txai, as estradas não eram pensadas para quem vivia ali. 

O indigenista histórico Txai Terri relembra o Acre da década de 1970, quando indígenas pagavam "aluguel" para viver na floresta. Foto: Alexandre Noronha

"O sonho dessa estrada era o sonho dos grandes proprietários que compraram terra a preço de banana. Eles sonhavam em levar o Pacífico aos portos da China e do Japão", explicou. 

Nesse cenário, a existência indígena e seringueira era tratada como um entrave ou, pior, como mão de obra subalterna em seu próprio território.

"Os indígenas viviam em terras particulares. Tinham que pagar renda, pagar aluguel para viver na floresta, como se nunca tivessem vivido aqui antes", rememorou Txai.

Foi nesse contexto de exclusão que a chave virou. Txai recordou o momento em que seringueiros e indígenas perceberam que a ecologia não era um conceito gringo, mas a própria sobrevivência deles. 

"Eles disseram: 'Nós não queremos meio ambiente vindo de fora. O meio ambiente é o seringueiro. Nós é que garantimos essa floresta em pé'. Sem terra e sem território, não tem educação, não tem saúde, não tem nada."

Txai ainda revelou a faceta pragmática de Chico Mendes, muitas vezes lembrado apenas pelo idealismo. O líder seringueiro sabia que a revolução precisava de estrutura. Txai contou que Chico convocava aliados do sudeste com uma missão clara: 

"Tu vai lá criar cooperativa, criar associações. Sem projeto a gente não consegue recurso para fazer a revolução".

"Se fosse fácil, nós nós não estaríamos aqui"

A liderança indígena e cineasta Siã Huni Kuin trouxe a vivência crua da união entre povos que, historicamente, foram colocados uns contra os outros pelos patrões da borracha. Siã arrancou risos e reflexão ao desromantizar o passado. 

"O passado não foi fácil. Se fosse fácil, nós não estaríamos aqui", brincou, referindo-se à tranquilidade que nunca tiveram. Ele narrou sua chegada a Rio Branco aos 20 anos, vindo do Seringal Fortaleza, certo de que sabia tudo sobre a vida, para descobrir que na cidade era um estranho que "não sabia nem para onde ia o carro".

O cineasta e liderança indígena Siã Huni Kuin relembra as dificuldades da década de 1980 e a estratégia de escuta de Chico Mendes para unir indígenas e seringueiros. Foto: Alexandre Noronha

O encontro com Chico Mendes em Xapuri foi o divisor de águas. Siã destacou que a liderança de Chico não se impunha pela força, mas pela escuta. 

"Eu achava que muita gente não conseguia fazer aquele trabalho de organizar e levar a gente para frente sem mandar. O Chico tinha esse respeito."

Siã foi enfático ao dizer que a estratégia de Chico poupou o movimento de guerras internas. 

"A gente podia perder tempo e ficar fraco se desgastando entre nós mesmos. O pensamento dele era: você tem que sentir o que o povo pensa para somar."

Olhando para o presente, Siã não poupou críticas ao desmonte das políticas ambientais nos últimos anos por conta do governo Bolsonaro, alertando que as conquistas são frágeis. 

"O presidente que passou quatro anos derreteu tudo o que a gente criou. Acabou o projeto de defesa de flora e fauna, ficou só o 'passar a boiada'. Temos que estar prontos para enfrentar não só a questão seringueira, mas a vida mesmo."

A indigenista Malu Ochoa (CPI-Acre) alerta para o cerco do agronegócio às áreas protegidas e denuncia ameaças legislativas atuais, como o Marco Temporal. Foto: Alexandre Noronha

O cerco atual

Trazendo o debate para a urgência do presente, a indigenista Malu Ochoa, da CPI-Acre, alertou que a conquista da terra não encerrou a guerra. Pelo contrário, as ameaças mudaram de tática, trocando a pistolagem explícita pela pressão econômica e legislativa.

"Diante dessas atuais ameaças, dessas atividades econômicas predatórias, como é o caso do agronegócio nos últimos anos aqui no Acre, que é responsável pelo desmatamento no entorno dessas áreas protegidas, gera-se um cenário de permanente insegurança", analisou Malu.

Ela foi incisiva ao citar o Congresso Nacional como o novo front de batalha, onde projetos de lei tentam reverter direitos históricos. 

"Quando a gente acha que pagou, começa de novo. Atualmente, agora, é o Marco Temporal", denunciou.

Para Malu, a resposta está na gestão cotidiana do território, uma "herança viva" que atravessa gerações. 

"Se protege o território, se protege a vida. Esses encontros reúnem um povo diverso: professores, agentes agroflorestais, parteiras. A Aliança representa a união de forças que começou naquele tempo e que hoje ainda continua."

A nova colonização e a juventude que cobra

A ponte para o futuro foi construída por Angélica Mendes. Neta de Chico e gestora de projetos do Comitê, ela representou a geração que herdou a luta pela terra e a transformou em luta pelo clima.

"Começou com uma reserva, a do Alto Juruá. Depois veio a Chico Mendes, a Rio Ouro Preto... Hoje já são 96 reservas extrativistas sob gestão federal", contabilizou Angélica.

Angélica Mendes, gestora de projetos do Comitê, apresenta a campanha "A Gente Cobra" e convoca a juventude a ocupar os espaços de decisão. Foto: Alexandre Noronha

Ela citou o exemplo das reservas marinhas, onde pescadoras do Canto Verde sentem que "o Chico pensou nelas" mesmo à distância. Porém, Angélica alertou para uma "nova tentativa de colonização" sobre a Amazônia, onde discursos externos tentam ditar as regras sem ouvir quem está no território. 

"A gente vive não só o resultado da invasão antiga, mas uma nova pressão. Não dá para colocar a floresta de um lado e as pessoas do outro. A luta do meu avô era pelas pessoas."

É contra esse apagamento que surge a Aliança dos Povos pelo Clima, uma articulação liderada majoritariamente por mulheres e jovens. Angélica explicou que a rede nasceu da necessidade de romper com o "discurso intelectualizado" das conferências internacionais que afasta a base.

"A galera do território não se sentia pertencente. O discurso de cima para baixo às vezes mais atrapalha que ajuda", avaliou.

A resposta da juventude para a COP30, que foi realizada em Belém, é a campanha "A Gente Cobra". O objetivo é garantir que o financiamento climático chegue efetivamente nas mãos das comunidades. 

"O recurso que vem para a Amazônia não fica na mão de quem está na base. A Aliança é nosso modo de dizer ao mundo: A Amazônia tem dono e o dono é o povo que cuida."

Angélica também tocou em um ponto sensível: a identidade urbana. Ela convocou os jovens da cidade a reconhecerem sua ancestralidade. 

"Muita gente aqui no Acre tem um pai, um avô que veio do seringal, mas as pessoas não estão se reconhecendo mais nesse lugar. A gente não pode esquecer de onde vem nossa raiz.”

Luz

O encerramento oficial, no entanto, aconteceu fora do teatro. Entoando o Hino do Seringueiro, o público saiu em cortejo pelas ruas do centro de Rio Branco até a Praça dos Povos da Floresta.

Aos pés da estátua de bronze de Chico Mendes e do menino, dezenas de velas foram acesas, iluminando a noite amazônica. Ao final da programação, ainda no teatro, Angela Mendes resumiu o sentimento de dever cumprido da Semana Chico Mendes 2025, mas também do Festival Jovens do Futuro 2025, do Espaço Chico Mendes e Fundação Banco do Brasil, e de toda a mobilização feita pelo Comitê Chico Mendes neste ano em uma única palavra: "Conseguimos!".

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