Professor de Xapuri é finalista do Prêmio Jabuti Acadêmico com livro que busca o espírito original das RESEXs
O livro nasceu das experiências e dos conflitos vividos pelo autor durante seu período como servidor do ICMBio
Capa do livro “Que é Reserva Extrativista?”. Foto: Reprodução/Ifac
O professor Anselmo Gonçalves da Silva foi anunciado como finalista do Prêmio Jabuti Acadêmico 2025 com a obra “O que é Reserva Extrativista?” que busca compreender e descrever o que chama de “espírito da reserva extrativista”, um conceito que vai além da formalidade jurídica e se ancora nas práticas e modos de vida das populações que idealizaram o modelo de Reserva Extrativista, no Acre - especialmente na década de 1980. Ele conversou na última quinta-feira, 17, conosco.
O livro é fruto de anos de escuta e convivência, desde quando Anselmo passou a trabalhar no Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), sem, inicialmente, conhecer a fundo a história da própria reserva em que atuaria:
“Eu cheguei no Acre em 2006, numa época em que eu não tinha internet e não conhecia nada. Morava bem perto da reserva, mas nem sabia que ela existia. De repente, fiz um concurso e, em 2009, fui trabalhar no ICMBio. Eu não tinha ideia da história da reserva. Como muitas pessoas que passam em concurso e vão trabalhar em órgãos ambientais, eu também não conhecia nada. Comecei a conviver com as pessoas, e isso foi muito marcante para mim”, relata.
“O maior desafio, acho, foi a perda do Chico, que foi muito marcante pelo papel que ele exercia de mediação entre mundos”
Aos poucos, ele começou a perceber que havia múltiplas narrativas sobre a criação e os caminhos da reserva. Algumas carregadas de entusiasmo e outras de frustração, principalmente entre os moradores que viam, com o tempo, o distanciamento entre o ideal original da Resex e a forma como ela vinha sendo institucionalizada.
Uma dessas experiências o marcou profundamente. Durante uma reunião comunitária, ele precisou comunicar as decisões do Conselho Deliberativo da reserva.
“De repente, chegamos à pauta de comunicar as decisões do conselho. Eu falei: "Olha, o conselho tomou as seguintes decisões, tal, tal". E aí o morador pediu a palavra e disse: "Olha, aqui ninguém participou. Alguém participou? Ninguém". A gente não participou, e se não participou, não deve seguir essas decisões. Para mim, aquilo era conflitivo, porque meu papel era justamente comunicar as decisões do conselho", lembra.
Esse tipo de questionamento foi o ponto de partida para o desenvolvimento do que Anselmo chama de homolo-crítica, uma abordagem teórica que analisa a distância entre os conceitos fundadores da reserva e suas formas institucionais. Para ele, o Estado brasileiro, ao tentar formalizar a reserva, acabou criando dispositivos que não dão conta da complexidade e originalidade do projeto original:
“Um exemplo é o CCDRU. Embora o contrato de concessão tenha sido uma solução possível com os instrumentos institucionais disponíveis na época, ele não consegue reproduzir a complexidade da forma de apropriação territorial desenvolvida pelas pessoas do movimento hoje", diz.
Um projeto de mundo
Anselmo destaca que o projeto Reserva Extrativista não foi apenas territorial ou ambiental. “É um projeto de mundo”, afirma. Um projeto que carrega uma filosofia de autogestão e democracia profunda, semelhante às ideias do autonomismo na América Latina. A perda de Chico Mendes, para ele, representou também a perda de um mediador entre mundos.
“O maior desafio, acho, foi a perda do Chico, que foi muito marcante pelo papel que ele exercia de mediação entre mundos. Ele conseguia promover um cruzamento, uma interface entre diferentes formas de ver o mundo — algo que, na teoria, se chama ecologia de saberes. Ele articulava o pessoal do meio ambiente, dos sindicatos, da esquerda política, a igreja... e ia apoiando para que essas conexões dessem origem a coisas novas. Porque o modelo Reserva Extrativista [com o seu espírito original], por exemplo, é uma criação inédita. E muita coisa surgiu daí, como o CNPT, que foi a primeira organização criada para atuar nesse campo [para mim foi a primeira organização estatal com perspectiva decolonial, antes do termo ser usual na academia]1. Eu não digo para ‘gerir’, porque, na minha opinião, esse termo não combina com a filosofia da reserva", disserta sobre.
Prêmio Jabuti Acadêmico é um dos maiores prêmios acadêmicos do país. Foto: Reprodução
O livro de Anselmo também reflete sobre como, ao longo dos anos, a Resex foi se tornando “órfã” de seu espírito original. Um marco dessa transformação foi a criação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), que enquadrou as reservas extrativistas dentro de uma lógica centrada na perspectiva tradicional da ‘conservação da biodiversidade’ e da ‘gestão de áreas protegidas’, conforme praticada mundialmente.
“O momento que a Reserva Extrativista Chico Mendes vive hoje é resultado de um longo período de semigovernança territorial. Eu acompanho a história desta reserva desde 2009”
Um panorama histórico-social
ntretanto, sua crítica não é contra a ideia da reserva, mas contra o que fizeram com ela. Contra o abandono institucional, contra a burocracia que impede o morador de decidir sobre sua própria colocação, contra o desmonte de uma governança que já foi mais próxima das comunidades. Anselmo testemunhou esse processo por dentro.
“O momento que a Reserva Extrativista Chico Mendes vive hoje é resultado de um longo período de semigovernança territorial. Eu acompanho a história desta reserva desde 2009. Lembro que, mesmo tendo cerca de 10 mil pessoas e um tamanho comparável ao de alguns países, ela já chegou a ter apenas três pessoas responsáveis por sua gestão. Num contexto de avanço da agropecuária, é impossível que um território diferenciado, cheio de recursos disputados, consiga subsistir sem uma governança territorial plena, especialmente diante do poder econômico do capital", conta.
O que ele pede não é uma revolução sem escuta. É exatamente o contrário: escutar de verdade. Escutar o morador que diz que se sente acuado, injustiçado. Não para ceder a tudo, mas para entender. Ele também fala da disputa de narrativas. De como o abandono institucional abriu espaço para propostas destrutivas se apresentarem como soluções.
Professor se surpreendeu com a indicação ao Prêmio. Foto: Reprodução
“Eu acho que o morador precisa estar no centro do projeto da reserva. A gente precisa ter argumentos, convencer e construir uma maioria dentro da reserva, para que essa maioria seja a base de sustentação da própria reserva diante das imprevisibilidades políticas. Porque virão outras eleições, e ninguém sabe qual será o contexto do mundo, para onde as coisas vão", diz.
E ainda assim, mesmo diante desse cenário, ele não desiste. Quando recebeu a indicação ao Prêmio Jabuti Acadêmico, se surpreendeu.
“Eu estava escrevendo um capítulo da tese, aí fui achando coisas, o texto foi crescendo e acabou virando um livro, sem que fosse a intenção inicial. Eu nunca tinha feito um livro antes. Foi algo muito espontâneo. Eu não tinha dinheiro e, se fosse tirar do meu próprio bolso, pesaria, porque tem a família também, a gente não pode ficar tirando dinheiro sempre, senão complica. No fim, o livro ficou pronto, e eu nem esperava muito. Para mim, foi uma surpresa boa", declara.
No livro, em linguagem poética, Anselmo refere-se à Reserva Extrativista como um ‘barco ancestral’, feito e encantado pelos antigos seringueiros para que pudessem pilotar seus destinos rumo a futuros melhores. Segundo ele, é necessário (re)encantar a atual Reserva institucional com o seu espírito-filosofia original — assim como as instituições responsáveis por sua ‘gestão’, como o ICMBio, que carrega o nome de Chico Mendes.
Para ele, a vitória mais importante não é a premiação em si. É o debate.
O livro de Anselmo concorre na categoria Geografia e Geociências. A cerimônia de premiação será realizada no dia 5 de agosto, no Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo, quando serão anunciados os vencedores. A relação completa dos finalistas por categoria pode ser consultada no site oficial do prêmio: https://www.premiojabuti.com.br/academico/5-finalistas-academico/.