MPF/Acre e Comitê Chico Mendes se reúnem para discutir memória e legado dos seringueiros

Durante visita ao Comitê em Rio Branco, o procurador da República Lucas Dias ouviu relatos sobre os desafios da Resex Chico Mendes e reforçou o compromisso do MPF com a preservação da memória

Encontro reuniu equipe do Ministério Público Federal do Acre e Comitê Chico Mendes. Foto: Comitê Chico Mendes

Lucas Dias, Procurador Regional dos Direitos do Cidadão no Acre esteve no Comitê Chico Mendes para um diálogo sobre os desafios e caminhos da proteção ambiental e social na Amazônia acreana, na última quinta-feira, 17. Dias mora no Acre desde 2020 e é conhecido por sua atuação na garantia de direitos humanos, com foco na comunidade LGBTQIAPN+. A conversa destacou a urgência da preservação da memória e a necessidade de fortalecer as comunidades da floresta contra o desmonte e a pressão do agronegócio.

A reunião contou ainda com a presença de Angela Mendes, defensora e presidenta do Comitê, a equipe de comunicação da organização, Angélica Mendes, neta de Chico Mendes e o time que acompanha Lucas. Para Mendes, presidenta do Comitê Chico Mendes, o fortalecimento da luta requer uma maior articulação entre a sociedade civil e as instituições: 

“É uma necessidade que o Ministério Público pudesse liderar uma iniciativa de reunir organizações institucionais e não institucionais para se debruçar sobre a situação da Resex. Criar o que chamam de uma mesa de situação, um grupo de trabalho ou de pesquisa voltado para a Chico Mendes. A reserva tem muitas especificidades, mas, a partir dela ou de outra similar, é possível pensar e ampliar soluções para as demais unidades de conservação”, propôs.

A força da população e da memória de luta que levou à criação da Resex é o que ainda a mantém de pé. Porque, na verdade, ela já teria tudo para estar no chão
— Angela Mendes

As ameaças às Resex Chico Mendes

Apesar de ser um símbolo da luta extrativista e pioneira no modelo de unidade de conservação, a Resex Chico Mendes enfrenta uma realidade alarmante. Com mais de 78.900 hectares desmatados até 2021, representando 8% de sua área total, a reserva sofre com o avanço da pecuária e a falta de fiscalização, segundo o artigo escrito por Lucas Dias, “Chico Mendes não é "irrelevante". A Amazônia Vive!”. 

Ele escreve que a derrubada da floresta para criação de gado, impulsionada por políticas que veem o meio ambiente como "óbice ao desenvolvimento nacional", resultou em um crescimento de 89% no desmatamento entre 2019 e 2021 em comparação com 2005. As queimadas, método de baixo custo e alta popularidade, devastaram cerca de 147.000 hectares na Resex entre 2005 e 2021.

“A força da população e da memória de luta que levou à criação da Resex é o que ainda a mantém de pé. Porque, na verdade, ela já teria tudo para estar no chão. É um território muito amplo, com muitos acessos, e o ICMBio não dá conta sozinho. Está cercada pelo agronegócio e sofre um tensionamento enorme. Além disso, há governos e estruturas governamentais dedicadas a enfraquecer essa ideia, numa disputa de narrativas que está presente em todo lugar. Ultimamente, isso tem aparecido de forma ainda mais intensa”, enfatiza Mendes.

Ela lamentou que estruturas governamentais se dedicam a "acabar com essa ideia" da reserva, e existe uma "disputa de narrativa presente em todo lugar".

Reunião partiu da escrita de uma artigo de Dias sobre a Resex Chico Mendes como exemplo de litigância ambiental no Brasil. Foto: Comitê Chico Mendes

A jovem liderança Raiara Barros, filha de Raimundão, primo de Chico Mendes, reflete esse ambiente ao expressar seu medo constante de que seu pai possa "pegar chumbo" como Chico Mendes, devido às ameaças por denunciar a expansão da agropecuária e a venda ilegal de lotes de terra, segundo o Jornal Varadouro.

O Procurador Dias alertou, em seu artigo, que o Governo Federal em 2022 reduziu o orçamento para proteção ambiental, com o IBAMA executando apenas 37% de sua verba para prevenção e controle de incêndios florestais até setembro, justamente no pico da estação de secas. Coincidentemente, 2022 registrou o maior número de queimadas para o mês de agosto em 11 anos na Amazônia. O grupo de "resistência" à fiscalização é formado por ex-extrativistas que se tornaram pecuaristas e lideranças políticas, aglutinando pequenos moradores com a retórica de que também podem ser afetados pelas operações do ICMBio.

“É muito perigoso, do ponto de vista do Estado, depender tanto do protagonismo de uma instituição ou de uma pessoa, individualmente. Minhas duas atuações socioambientais mais relevantes vieram a partir de provocações da sociedade civil. A primeira foi o caso da estrada de Pucallpa. Assim que me mudei para Rio Branco, vi a notícia e fiquei completamente impactado. Instalei um procedimento no MPF. Esse procedimento foi transferido para a unidade do MPF em Cruzeiro do Sul, ainda em 2020. Mas até 2023, nada havia sido feito. O MPF de lá enviou dois ofícios para o IBAMA, pediu informações para a FUNAI... e só”, conta.

Memória e educação

A preservação da memória de Chico Mendes e outros líderes, como Wilson Pinheiro, foi um tema de grande relevância. Segundo o Procurador, o MPF tem atuado para resgatar essa memória, como no caso do sindicalista Wilson Pinheiro, assassinado em 1980. 

Historicamente, esses direitos sempre foram colocados em segundo plano
— Lucas Dias

Dias mencionou seu trabalho para a responsabilização civil da União e do Estado do Acre pela omissão na investigação da morte de Pinheiro, buscando reparação e a preservação e divulgação de sua memória. Ele conseguiu que uma recomendação para a criação de um comitê de memória e verdade fosse acolhida pelo governador do Acre:

“Eu expedi a recomendação ao governador, e a gente estava muito em dúvida se ele iria acolher, porque, enfim, não é uma pauta prioritária. Mas ele acolheu. O comitê foi instituído e agora está vinculado à diretoria de Direitos Humanos. O governo assumiu o compromisso e vai tocar a iniciativa, que deve começar agora em agosto. Vamos realizar uma audiência pública, onde os familiares das vítimas da ditadura militar vão poder contar suas histórias. Fizemos uma diretriz bem detalhada na recomendação: tem que ser uma audiência pública, tem que ouvir as pessoas, publicar um relatório, divulgar no site, garantir transparência”, explicou Lucas Dias.

Angela Mendes reforçou a importância da preservação da memória para o Comitê. Ela lamentou que o Acre não tenha espaços institucionais de memória que pudessem promover uma consciência coletiva, ao contrário do movimento de aversão a essas políticas de memória e verdade. 

A gente vê um movimento de aversão às políticas de memória, de verdade, às questões ambientais
— Lucas Dias

A pauta da educação também foi abordada como um caminho crucial. Angela citou o caso concreto de uma jovem extrativista da Resex Chico Mendes que só conseguiu ingressar na universidade em Cruzeiro do Sul, longe de sua família, e não conseguiu transferência para Rio Branco, evidenciando como o direito à educação não está chegando a essa juventude. 

“Isso também é um complicador, e se conecta com o que vocês vêm discutindo: a necessidade de garantir que essas pessoas tenham prioridade. Qual é a ordem de prioridade para transferência? Porque deveria haver, sim, um critério que considere meninas de populações tradicionais, extrativistas, que, muitas vezes, estão no sistema sem que seus direitos específicos sejam reconhecidos. Historicamente, esses direitos sempre foram colocados em segundo plano”, abordou Dias.

União de forças

O Procurador sugeriu que, além das campanhas e do "artivismo" que o Comitê já utiliza com sucesso, uma maior incidência jurídica e o desenvolvimento de um "braço jurídico" seriam estratégicos, aproveitando o interesse de voluntários com formação em Direito.

Bandeira do Comitê foi erguida literal e metaforicamente na reunião. Foto: Comitê Chico Mendes

“Acho importante que o Estado também assuma essa responsabilidade. Porque vocês não são obrigados a fazer isso. E, institucionalmente, os espaços de memória têm outra circulação: escolas visitam, despertam uma consciência coletiva... e isso, eu sinto, ainda falta no Acre. Pelo contrário, né? A gente vê um movimento de aversão às políticas de memória, de verdade, às questões ambientais”, lembra o procurador ao falar de como Marina e Chico são vistos pela população acreana.

Angela Mendes concordou com a necessidade de o MP ter um peso institucional mais forte para certas ações. Ela também ressaltou a importância de desenvolver um "fluxo" institucional para o apoio a defensores ambientais que sofrem ameaças, para que as comunidades saibam como agir, a quem acionar e como documentar os casos, evitando a dispersão de esforços e a ineficiência comunicacional. 

A conversa se encerrou com o reconhecimento de que a inoperância do Estado pode ser "fatal para que a própria população apoie as políticas ecologicamente sustentáveis", e que o apoio popular é fundamental para a efetividade das políticas governamentais.

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