Karla Martins, produtora acreana, é indicada a prêmio da Billboard: “não vou só”
Da floresta para a arte, é preciso contar a história da Amazônia por quem é de dentro
Karla Martins na coletiva de imprensa de lançamento do Festival Varadouro, em Rio Branco. Foto: Hannah Lydia
ato i: “Ercília, Nory, Cecília, Anna, Clarice e Mara”
Eu faltei à aula para encontrar ela há uns dois anos. Pedi meu Uber moto - ele sempre erra a casa e para uma esquina depois -, bati a porta e entrei. Chego, meio calado, pego no meu celular e sento. Ouço ela falando: “Já vai, Victor”. Ela demora uns 10 minutos, senta na ponta do sofá oposto à minha. Visivelmente com sono, com seu vestido largo e cabelos ora grisalhos, ora ‘rosa-pink’. Desabafo. Só depois começamos a entrevista:
“[Nasci] em Rio Branco, aqui no bairro da Capoeira, no centro da cidade”, se apresentou na época, hoje ela tem 56 anos.
Karla Martins, produtora acreana e articuladora do Comitê Chico Mendes, foi indicada na categoria “Empreendedora Cultural” no WME Awards by Billboard, que acontece nesta quarta-feira (17), único prêmio brasileiro totalmente dedicado às mulheres na música. O tema é "Coração em Festa", em homenagem a Preta Gil. Enquanto se prepara para a noite de gala, ela reflete:
“A vitória, ela já veio quando nós, que estamos aqui em um território que é mais distante, somos reconhecidas no mesmo lugar e na mesma qualificação de pessoas de outras regiões. É um fato mesmo que o Brasil durante muito tempo esteve de costas para aquilo produzido e pensado culturalmente fora dos grandes eixos, especialmente o eixo Rio-São Paulo”, diz ela.
Festival Varadouro é uma das muitas conquistas de Karlota e equipe para a cultura acreana. Foto: Hannah Lydia/Comitê Chico Mendes
Filha de Éden e Ercília, dois amazônidas vindo dos seringais. Um amazonense e outra acreana. Aprendeu a ler muito nova, pouco depois dos 3 anos, por conta da vizinha, também professora, a Nory, por meio da “carta do ABC”, um método antigo e nada recomendado hoje em dia:
“Falam que é péssimo, mas eu aprendi a ler assim”, refuta.
Cecília Meireles, Emily Dickinson, Shakespeare, Moliére, Anna Sewell, Clarice Lispector e Machado de Assis tiraram ela das coxias para o palco do amor pela literatura. Sua mãe morreu aos seus 15 anos. Em almanaques, livros que a vizinha - Mara Lúcia, que trabalha na biblioteca da Universidade Federal do Acre - trazia, novelas de rádio, a TV, que chegou em 1974 no Acre - ano de copa - e a poesia, a artista aprendeu sobre o mundo. Sempre popular nas escolas, ela não se conteve e, assim que aprendeu sobre o mundo, decidiu explorá-lo.
ato ii: Éden, Chico e Jorge
Mesmo que fisicamente seja apenas ela a cruzar o tapete vermelho, há uma multidão invisível ao seu lado. A indicação coroa seu trabalho à frente da Casa Ninja Amazônia e de tantos projetos que fomentam a música e o audiovisual no Norte. Ela cita Gregório Filho para explicar o que sente: “Não é o prêmio que qualifica a pessoa. É a pessoa que qualifica o prêmio”.
Karla participa do evento Mulheres no Poder e do prêmio WME da Billboard. Foto: Hannah Lydia/Comitê Chico Mendes
“Quando você ocupa um espaço desse, eu não vou só. Vai comigo uma legião de pessoas que aqui nos nossos territórios amazônicos, ou nos territórios que são os periféricos do Brasil, fazem muitas coisas”, afirma. “É uma alegria e a certeza de que eu não vou só. Eu vou com um bando de gente que produz e acontece, fora dos grandes eixos, e que, por assim dizer, muda o cenário.”
Na nossa primeira entrevista, ela falou que tinha uma irmã mais velha que era jornalista. Com um tio que era muito conhecido aqui, o Edson Martins, e outro que ainda está vivo no Rio de Janeiro, que é uma das últimas autoridades na Amazônia, chamado Edilson Martins, ele fez a última entrevista com o Chico Mendes.
No dilema de qual curso escolher, após a morte de seu pai, ela passa 10 dias no Acre, velando ele até voltar para o Rio e nunca mais voltar para Ciências Sociais. Ela escolhe teatro e “se entende como pessoa”.
“A coisa mais importante no teatro, para mim, era a possibilidade de ser o outro. Quando você é o outro, você se permite entender o outro. Você se permite muitas coisas que normalmente não permitiria”, diz.
Karla tem décadas de atuação na cultura acreana. Foto: Hannah Lydia/Comitê Chico Mendes
Outra coisa que a transformou foi viver em grupo. A coletividade é uma marca de seu trabalho e sua vivência. Assim, seis anos após a morte de Chico Mendes, ela voltou para o Acre. Graças ao teatro, a atriz rodou 25 países. Na entrevista, ela só fala da Amazônia. Ela chegou e queria “andar na floresta”.
Enquanto sua mãe falava do quanto sofreu lá, ela foi alegre, assim que pisou em um seringal, próximo ao que sua viveu na infância. A partir desse momento, ela se dedica a educar e aprender com os povos da floresta. Primeiro, no Projeto Seringueiro, depois construindo uma carreira. E chamou atenção do governador Jorge Viana, para trabalhar na cultura do estado.
Além da premiação, ela integrou o evento "Mulheres e Poder", do Estúdio Clarice, na última semana. E quando Karlota fala de poder, o tom muda. Para ela, discutir poder não é apenas equilibrar números entre homens e mulheres. É uma questão de sobrevivência.
“Importante pensar que não se trata somente de enfrentamento ao patriarcado... O enfrentamento ao patriarcado seria apenas uma ocupação do lugar”, reflete Karla, aprofundando o olhar. “Mas é mais arraigado. Nós não estamos lidando somente com o patriarcado. Nós estamos lidando com a misoginia.”
Prêmio será em homenagem à Preta Gil. Foto: WME Awards/Billboard
Ela relembra os anos 80 e a tese da "legítima defesa da honra", traçando uma linha direta até a violência atual.
“Houve uma época de muitas mortes de mulher... Haja vista a morte da Ângela Diniz, que marcou uma época onde num julgamento do assassinato de uma mulher, em vez de se julgar o crime, se julgou o comportamento e a atitude da vítima”, relembra.
Para a empreendedora, celebrar mulheres na música ou na política exige reconhecer que o simples ato de existir ainda é um risco, citando a violência política que ainda assombra os espaços de decisão.
“Que sociedade é essa que permite... uma parlamentar dentro de uma casa de legisladores, ser escutada de um homem que ela estava merecendo uns tapas? Como assim? Que sociedade é essa que não nos faz entrar num lugar desse e fazer várias intervenções contra isso, sabe?”, questiona.
O "poder" que Karlota defende no Estúdio Clarice e celebra no WME é, portanto, existencial.
“Nós estamos falando de mulheres de poder em muitas instâncias, inclusive do poder de ser. O poder de estar mulher, de ser mulher em qualquer lugar.”
Karla é um nome importante na Mídia Ninja. Foto: Mídia Ninja
ato iii: Cultura e Amazônia
Apesar da rotina do serviço público ter o poder de te destruir, ela sempre teve um foco no coletivo, algo que já fazia parte dela desde o teatro. Depois de quase 20 anos, ela sai da máquina estatal e enfrenta um período, como artista, de batalha pelo trabalho. Assim, um amigo a chama para fazer um filme e ela se empenha na empreitada. O “Noites Alienígenas” ganha o mundo, revoluciona tudo nela e no estado.
“Ele virou uma coisa impactante para muita gente [...] pela crueza da realidade que está ali exposta de um novo futuro da juventude”, afirma a entrevistada.
Atualmente, ela coordena a Casa Ninja Amazônia, faz parte do Comitê Chico Mendes e desenvolve projetos no audiovisual da Amazônia. Ela não possui trabalhos fixos aqui. “Por uma decisão política”, justifica. Para a produtora, estamos vivendo um momento extremamente conservador. Seu medo é “endireitar”, que o mundo continue nesse sistema, sem pensar na cultura, na coletividade.
“Eu quero viver aqui, não quero sair da Amazônia. Meu lugar é aqui”, diz. Ela sonha, mesmo sem saber que vai ver este mundo, compartilhado, artístico e colorido - como o seu cabelo. Que narra a Amazônia, seja quem nela vive, como ela defende.
E como ela mesma disse, aonde ela for: “Eu não vou só”.
Com produtos da floresta e histórias de resistência, em Xapuri propõe caminhos possíveis para uma economia amazônica de base comunitária